Um dos desafios enfrentados atualmente em todo o mundo, e fortemente no Brasil, é o tratamento do que em inglês é conhecido como SUD: sigla para “substance use disorders”, os transtornos do uso de substâncias. Isso inclui o uso e dependência do crack/cocaína, que têm sido foco de pesquisas científicas em saúde pública.
Dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), divulgados no Relatório Mundial Sobre Drogas 2020, mostram que cerca de 269 milhões de pessoas usaram drogas no mundo em 2018 – aumento de 30% na comparação com 2009. Além disso, mais de 35 milhões sofriam de transtornos associados ao uso de drogas. O mesmo documento aponta que aproximadamente 2,8 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos usavam cocaína na América do Sul, o que correspondia a quase 1% da população nessa faixa etária.
O Brasil contribui significativamente para o mercado de cocaína, com grande parte do consumo ocorrendo na forma de crack. Em nosso país, o perfil sociodemográfico dos usuários é caracterizado por alta vulnerabilidade, o que torna difícil o envolvimento deles em tratamentos. Levando pontos como este em consideração, o estudo Uso do Canabidiol Comparado ao Tratamento Farmacológico Convencional para Dependência de Crack: Um Ensaio Clínico Duplo-Cego Randomizado Paralelo de Viabilidade e Eficácia Preliminar, publicado na revista científica “International Journal of Mental Health and Addiction”, em 8 de abril de 2024, se propôs a reproduzir a vida real dos indivíduos durante a pesquisa, optando por pacientes que não se encontravam internados.
A coordenadora do estudo, dra. Andrea Gallassi, que é professora associada da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da UnB, explica que a ideia de fazer uma pesquisa de vida real com pacientes com dependência de crack visou “reproduzir o modelo de tratamento preconizado no Brasil, que é um modelo comunitário de portas abertas, com os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, os CAPS AD. Alguns deles têm leitos aos quais a pessoa pode recorrer no caso de alguma necessidade, uma recaída, e ficar em média 15 dias, mas sempre participando das atividades. A proposta era reproduzir esse modelo de atendimento realizado no Brasil, considerando o contexto da pessoa, o dia a dia dela, o que ela faz, e não um modelo de hospital fechado, que não é a vida da pessoa. Eu precisava ver se o tratamento funcionaria em um estudo de vida real e não tendo todos os controles de quando as pessoas estão em hospitais com monitoramento do que come, das medicações, do que usa“.
Pioneira no Brasil, a pesquisa foi realizada no Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas, um centro de pesquisa multidisciplinar situado no campus Ceilândia da UnB, e contou com o financiamento da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF). Foi a primeira a receber autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importar CBD para fins de pesquisa científica, após dois anos de negociação com o órgão, de 2017 a 2018. A coleta de dados teve início em agosto de 2019 e seguiu até março de 2020, quando veio a pandemia de covid-19 e, portanto, sua interrupção. A retomada da coleta se deu em julho de 2021 para finalização em maio de 2022.
O objetivo era verificar a segurança e a tolerabilidade do uso do CBD (se era um medicamento seguro, sem grandes eventos adversos, se o paciente tomava sem problemas), a frequência do uso de crack, a presença de eventos adversos, sintomas de saúde física e mental e a “fissura” (compulsão) pelo crack. Os participantes deveriam comparecer uma vez por semana durante 10 semanas para receber o kit de medicação, responder a questionários sobre uso de crack e de outras drogas, receber uma intervenção terapêutica, passar pelo médico e fazer o teste toxicológico de urina, que foi analisado pelo Instituto de Criminalística da Polícia Civil do Distrito Federal.
Eles foram alocados de forma aleatória em dois grupos: o grupo CBD e o grupo controle. O grupo CBD recebeu óleo de CBD, (50 mg/ml de CBD), que consistia em CBD isolado (sem THC). O grupo controle recebeu o tratamento comumente utilizado (fluoxetina, ácido valproico e clonazepam) nos serviços CAPS AD para pessoas com dependência de crack considerando os sintomas apresentados (insônia, ansiedade, depressão, inapetência). Para que os participantes não soubessem em que grupo estavam, o que foi informado apenas no fim do estudo, o grupo CBD recebeu, além do óleo de CBD, três medicamentos placebos (para simular os três do grupo controle), e o grupo controle recebeu os três medicamentos com princípio ativo e um óleo placebo feito com os mesmos componentes do óleo de CBD (óleo de coco e aroma de morango).
Dos 90 que atenderam aos critérios de elegibilidade (maior de 18 anos e com dependência de crack avaliada pela equipe), 17 foram excluídos por não retornarem e 73 foram alocados aleatoriamente em um dos dois grupos (37 no grupo de controle e 36 no CBD). Como resultado, observou-se que o CBD é um produto seguro/tolerável: apresentou significativamente menos eventos adversos em comparação com o grupo controle (comparação intergrupos) e teve melhor desempenho na redução de queixas de saúde física/mental. Com relação à compulsão pelo uso (fissura), os resultados foram semelhantes entre os dois grupos.
Nas análises intragrupo (comparando os participantes do grupo CBD com eles mesmos e o grupo controle com eles mesmos), o grupo do CBD teve desempenho melhor em mais parâmetros do que o grupo de controle, na redução do uso de crack, na não redução da ingestão de alimentos devido ao uso de crack e na melhora da autoavaliação dos participantes sobre seu estado de saúde. Além disso, o estudo demonstrou como os autorrelatos sobre o uso de drogas podem ser confiáveis e implementados em situações reais para coletar evidências válidas fora de laboratórios e hospitais. Isso porque, na comparação dos relatos de uso/não de crack com o teste toxicológico, os resultados informados eram verdadeiros, batendo com o achado no teste toxicológico.
Dessa maneira, o estudo aponta para o CBD como uma ferramenta terapêutica promissora para pessoas com dependência de crack. Dentre os impactos para os pacientes que participaram da pesquisa, a dra. Andrea destaca dois aspectos. Um deles é o fato de o canabidiol ter efeitos colaterais significativamente menores do que os medicamentos convencionais. “Isso é um fator muito importante, porque aumenta a adesão do paciente ao tratamento. Se você usa uma medicação que tem baixo efeito colateral, a chance de continuar usando é muito maior do que com um medicamento que dá sono, tontura, mal-estar“, pontua ela. Outro aspecto é o fato de que o canabidiol é um único medicamento que foi comparado a três medicamentos. “O fato de ter baixo efeito colateral e ser somente um medicamento para tomar por dia, e não três, contribui ainda mais para a adesão do tratamento”, continua. “Com melhor adesão, consequentemente há melhora desses pacientes“.
De acordo com a dra. Andrea, o estudo destaca-se por observar o quanto a cannabis tem potencial terapêutico para tratar diversas condições de saúde. “O pioneirismo do estudo demonstra isso. Por ser uma planta proibida, não conseguimos pesquisar da maneira como deveria ser. A duras penas, temos conseguido executar estudos para ampliar o espectro de aplicabilidade terapêutica que a planta tem. Identificamos também que, para a questão da dependência de crack, a dependência de substâncias estimulantes, o canabidiol pode ser uma aposta bastante promissora para diminuir os efeitos adversos relacionados à intoxicação do crack, à fissura e à abstinência. Ao conseguir estudar a planta, ampliamos as possibilidades de investimento em estudos científicos sobre os potenciais terapêuticos da cannabis. Com isso, uma gama de problemas de saúde poderá se beneficiar“, pontua ela.
Para o futuro, a proposta é ampliar o número de participantes da pesquisa. “Esse foi um estudo preliminar de viabilidade para observar como os pacientes se dariam com o tratamento, e teve esse resultado positivo. O próximo passo é ampliar o número de participantes para 200, 300 para identificar se os resultados positivos identificados na primeira etapa permanecem numa amostra maior ou, quem sabe, se os resultados melhoram. Seria o equivalente a uma fase 2 do estudo para irmos tomando consistência e acumulando evidência científica de que o canabidiol pode contribuir significativamente para o tratamento da dependência de crack“, conclui a dra. Andrea.